Camões e a Filosofia de Platão
Camões, a filosofia de Platão e o humanismo renascentista
A obra de Camões revela com suficiente clareza que o poeta era profunda e pluralmente informado da filosofia do seu tempo, a do Renascimento, e, através dela, da filosofia antiga. Os temas e teses filosóficas são muitas vezes e directamente, aludidos e expostos: o platonismo com maior frequência, o aristotelismo nos cantos de “Os Lusíadas” em que descreve a composição dos mundos e certos modos de pensamento, corno a arte da memória de Simónides, uma arte que, a partir do Renascimento, desaparece e hoje se ignora totalmente. Todavia. o poema camoneano mais significativo da relação entre a poesia e a filosofia é a famosa elegia SIÃO E BABEL, mais conhecida pelo seu primeiro verso: SOBOLOS RIOS QUE VÃO.
Aí se expõe, em termos directos, o platonismo e, ainda mais significativo, é aí que Camões mostra como a grande poesia tem uma inspiração, não sentimental, terrena e vivida, mas filosófica e sábia, não dada pelos mundos visíveis mas pelos mundos inteligíveis.
Compõem-se a elegia de duas partes bem marcadas. Na primeira, o poeta descreve o lugar donde está desterrado. São lugares desta terra e desta vida, embora Camões. os simbolize na história bíblica, naquilo que parta os judeus foram Jerusalém (ou Sião) e Babel (ou Babilónia). No final desta primeira parte, Camões suspende o canto e reflecte: as dores terrenas são para ser sofridas, não para ser cantadas; a si mesmo diz: “...e se eu as cantar quiser, a voz se me congele no peito”. Assim repudia aquela poesia, sempre a mais abundante, que é feita de sentimentos e da expressão imediata dos sentimentos. A verdadeira poesia só onde a situação vivida se transcende e, através do símbolo ou do pensamento, se sublima em “coisa mental”.
A abrir a segunda parte da elegia, logo transfere a Jerusalém terrena para a Jerusalém celeste, a terra de glória que o homem nunca viu com seus humanos olhos mas nunca deixou de lembrar com o pensamento:
Ó tu, terra de glória,
Se eu nunca vi tua essência
Como me lembras na ausência?
E logo acrescenta
Não me lembras na memória
Senão na reminiscência.
A distinção entre memória o reminiscência imediatamente no transporta para a filosofia de Platão. Simplesmente, o mundo das ideias, o mundo da origem e do princípio, de que o homem, descendido nas sombras na terra, guarda a reminiscência, é, em Camões, a cidade celeste, “aquela santa cidade de onde esta alma descendeu”; e o que, no platonismo, era o que fazia o homem ter o saber da reminiscência e, com ele, o conhecimento das “ideias”, aparece aqui, em Camões, como uma “doutrina celeste” que se, escreveu na “tábua rasa” que é a alma.
Assim se afasta Camões do platonismo inspirador. A noção de tábua rara, que será, a alma ou o espírito, é uma infeliz imagem do humanismo renascentista e o que há de mais ao pensamento platónico. Platão concebia a alma como o contrario disso, como depositária de todo o saber, a filosofia seria o instrumento para tomar o homem consciente do saber que traz consigo.
Transporta para o céu a “santa cidade”, as, saudades do poeta deixam de ser saudades terrenas, que de Sião tem quem esta cativo em Babel. A elegia retoma, então, a doutrina platonista e até a linguagem poética adquire uma expressão filosófica ou conceptual: o amor sobe da sombra ao real, da particular beleza para a Beleza geral e o entendimento passa deste mundo visível para o mundo inteligível.
Cantar a beleza geral e o mundo inteligível é o que cumpre e caracteriza a grande poesia. Por isso, o poeta, que nos ulmeiros havia pendurado a flauta com que cantava, agora toma a lira dourada para cantar a Jerusalém sagrada, minha pátria natural.